Há várias semanas que muitas das conversas que tenho circulam em torno de uma pessoa que este ano tive o privilégio de poder conhecer melhor. Digo isto com um misto de orgulho e de pena… orgulho pelo exemplo tão forte e tão próximo, pena por esta inspiração despertar tarde, 100 anos depois do seu nascimento. Mas nada é mais certo do que aquilo que hoje sinto: todos nós devíamos ser um pouco mais como Camilo de Mendonça.
Mas quem foi Camilo de Mendonça?
Alguns conhecerão o nome. E se não conhecem, convido a que o façam. Em poucas palavras, sempre insuficientes: foi um transmontano, homem de família, engenheiro agrónomo, político, alto funcionário público. Um visionário, empreendedor, dono de uma admirável e inabalável persistência. Foi o responsável pela maior revolução agrícola a que se assistiu em Trás-os-Montes até aos dias de hoje.
Camilo de Mendonça nasceu em Trás-os-Montes, em 1921. Aqui cresceu, para mais tarde continuar os seus estudos no Porto e formar-se na Universidade Técnica de Lisboa. Dedicou por inteiro a sua vida e o seu trabalho ao desenvolvimento da região que o viu nascer, dedicação que hoje comove não só quem conhece a sua história, mas sobretudo quem teve a oportunidade de o conhecer pessoalmente. Foi deputado da Assembleia Nacional eleito pelo círculo de Bragança, entre 1953 e 1973, grande impulsionador do cooperativismo e primeiro Presidente da RTP. Um homem ao serviço do seu país, que se empenhou e se excedeu para o fazer crescer.
Em 1964 começou a verdadeira revolução. Para fixar as populações do Nordeste, Camilo de Mendonça sabia que era necessário desenvolver o ensino superior (apoiou a fundação das primeiras estruturas daquilo que hoje é a UTAD) e a indústria. Com o propósito de valorizar as produções da região transmontana e dotá-la de ferramentas que abrissem portas a um crescimento económico e social, fundou nesse ano o Complexo Agro-Industrial do Cachão. Até hoje, nenhuma estrutura agrícola em Portugal se lhe assemelha.
O local do complexo fabril deu origem à aldeia do Cachão e as suas estruturas (água canalizada, saneamento e eletrificação) foram crescendo com ele. As produções da região – castanha, amêndoa, noz, azeitona, hortícolas, frutícolas, vinho, leite, carne, entre tantas outras – eram organizadas pelos Grémios da Lavoura e encaminhadas para o Cachão onde eram transformadas e canalizadas para os mercados interno e externo. Uma perfeita simbiose entre agricultura, indústria e comercialização. Para assegurar a viabilidade das produções foi projectada uma extensão rural, com contratação de agrónomos para apoiar os agricultores locais na implementação de novas técnicas. Foram também introduzidos novos produtos e feita a implementação do regadio. Foram projectadas 130 barragens de terra (das quais apenas nove foram executadas) e foi constituído um inovador parque de máquinas comunitário, com novas alfaias e máquinas agrícolas ao serviço da lavoura – instrumentos que na altura eram raros e pouco conhecidos. Estava até pensada a construção de um aeródromo próximo, a partir do qual a exportação da produção pudesse ser feita caso o mercado nacional não a absorvesse.
Mas não foi só uma revolução agro-industrial. Não nos podemos esquecer que estávamos numa região isolada, minifundiária, assolada pela pobreza. E o fascinante é que em 10 anos tudo mudou. Passou-se de uma era rudimentar para a era moderna. E muitas destas mudanças foram também sociais.
Foi construído um bairro social no Cachão para mais de 100 famílias, com equipamentos de apoio, como infantários, escola primária, centro de saúde, centro cultural, etc.. A empregabilidade aumentou, a dinamização da região e as condições de vida também.
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Tudo isto fortemente assente na força e na convicção de uma pessoa, que abdicou de rendimentos e confortos para estar tão presente em Trás-os-Montes como em Lisboa, percorrendo semanalmente centenas de quilómetros em estradas débeis e infindávies. Se hoje ainda sentimos que a capital está longe do mundo rural, imaginem como seria nos anos 60 e 70. E qual não terá sido o esforço de um homem para fazer chegar a Lisboa as necessidades e a importância dos projectos do Nordeste.
E tornou-os realidade, apesar de efémera. A sua sede de conhecimento e incansável actualização permitiram que o projecto do Cachão e a agricultura transmontana fossem equiparadas às melhores europeias.
Infelizmente, com a revolução do 25 de Abril e a instabilidade política, o projecto perdeu o apoio e a viabilidade e foi-se degradando ao longo dos anos. E o que resta são hoje vestígios de uma gigante obra, de uma vida passada e de um propósito que ainda faria sentido existir à luz dos dias de hoje. Usando a descrição do Sr. Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na comemoração do centenário do seu nascimento – que inspira este texto – foi um “adiantado mental”, e um verdadeiro meteoro, que viveu intensamente um sonho, com uma visão à frente do seu tempo, e consumiu a sua vida ao serviço desse sonho.
Isabel Abreu Lima é Gestora de Relações Públicas na Aveleda S.A. e jovem agricultora. Licenciada em Biologia, Mestre em Viticultura e Enologia, trabalhou na produção de vinhos do Douro e da Califórnia, enveredando mais tarde pelo ramo da comunicação e estratégia de marcas. Com uma pós-graduação em Gestão de Marketing, aprofundou a sua experiência nesta área, sempre ligada ao sector dos vinhos. Hoje, para além das Relações Públicas, tem o seu próprio projeto agrícola na região do Douro e ajudou a fundar o Conselho Consultivo dos Jovens Agricultores da CAP. Faz parte do Global Shapers Lisbon Hub desde Junho de 2020.
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